EM TERRA DE CEGOS
por birra, um rei zarolho mandou arrancar a língua de todos os poetas. Depois de delatados, perseguidos e encontrados, eram conduzidos ao pequeno castelo, onde, diante do rei, lhes era retirada a língua. Não se sabe bem o modus operandi de todo aquele procedimento, porque este texto não nos quis revelar, mas o que se sabe é que, um a um, os poetas ficaram sem o poder da fala.
Ao fim de algum tempo, o rei zarolho constatou que os mesmos, afinal, não precisavam das línguas para construir versos, pois tinham passado a escrever o que antes apenas diziam. O poderoso monarca mandou, então, arrancar-lhes as mãos.
Depois começou o estranho fenómeno. Sem língua e sem mãos, os poetas resguardavam-se perto das coisas inefáveis, como o pôr-do-sol ou o instante deslizar de uma gota de orvalho numa pétala da flor. A população, vendo tal misterioso encontro, procurou observar o estado de beleza dos poetas. O rei, apercebendo-se do perigo, resolveu – com um decreto-lei – todos os seus problemas. Em nome do seu olho perdido, ordenou, alegando o progresso, que fossem retirados os olhos à população. Por isso, ainda hoje se ouve dizer um ditado de tais estranhas paragens: em terra de cegos quem tem um olho é rei.
Mas esta história não termina aqui, porque o texto assim nos quis dizer. Segundo parece, e uma vez toda a população cega, o rei começou a ter graves problemas, pois sendo ele o portador do único olho do reino, ao descrever as suas experiências, decisões e observações, teve a necessidade de explicar o mundo aos súbditos cegos. Em cada nova estrada ou obra, o rei zarolho tinha de estar presente para descrever a paisagem, os declives, etc., recorrendo sempre às imagens que os agora cegos ainda possuíam. Assim, sem se aperceber, o rei não se desfez dos poetas, mas abriu uma escola de imagens. Tornando-se, ele próprio, no maior e melhor mentor de poetas do mundo. Por isso, e desde então, o velho ditado, que nos chegou de tão estranhas paragens, acabou por ser alterado, e em vez de em terra de cegos quem tem um olho é rei, ficou em terra de cegos quem tem um olho, afinal, é poeta
Ao fim de algum tempo, o rei zarolho constatou que os mesmos, afinal, não precisavam das línguas para construir versos, pois tinham passado a escrever o que antes apenas diziam. O poderoso monarca mandou, então, arrancar-lhes as mãos.
Depois começou o estranho fenómeno. Sem língua e sem mãos, os poetas resguardavam-se perto das coisas inefáveis, como o pôr-do-sol ou o instante deslizar de uma gota de orvalho numa pétala da flor. A população, vendo tal misterioso encontro, procurou observar o estado de beleza dos poetas. O rei, apercebendo-se do perigo, resolveu – com um decreto-lei – todos os seus problemas. Em nome do seu olho perdido, ordenou, alegando o progresso, que fossem retirados os olhos à população. Por isso, ainda hoje se ouve dizer um ditado de tais estranhas paragens: em terra de cegos quem tem um olho é rei.
Mas esta história não termina aqui, porque o texto assim nos quis dizer. Segundo parece, e uma vez toda a população cega, o rei começou a ter graves problemas, pois sendo ele o portador do único olho do reino, ao descrever as suas experiências, decisões e observações, teve a necessidade de explicar o mundo aos súbditos cegos. Em cada nova estrada ou obra, o rei zarolho tinha de estar presente para descrever a paisagem, os declives, etc., recorrendo sempre às imagens que os agora cegos ainda possuíam. Assim, sem se aperceber, o rei não se desfez dos poetas, mas abriu uma escola de imagens. Tornando-se, ele próprio, no maior e melhor mentor de poetas do mundo. Por isso, e desde então, o velho ditado, que nos chegou de tão estranhas paragens, acabou por ser alterado, e em vez de em terra de cegos quem tem um olho é rei, ficou em terra de cegos quem tem um olho, afinal, é poeta
Carlos Vaz, in Dez Anos de Solidão de Daniel Gonçalves
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